terça-feira, 7 de julho de 2020

Carta não lida:

não sei por onde começar, talvez pelo inicio. quando ainda não era um adolescente, já me sentia abandonado. soube, desde cedo, o significado de solidão, e isso assustava-me. quando me apercebi do quão sozinho estava, diariamente, recorri às tecnologias para preencher o vazio que sentia dentro de mim. na altura não sabia, mas esse seria um vício que havia adquirido, desde jovem. comecei a ter medo de pessoas, das interações e das mascaras. sentia como se não conhecesse ninguém verdadeiramente, nem mesmo a mim. quando me tornei adolescente já sabia o que era sentir ódio e raiva. descontentamento e inveja. inveja de ver todos os meninos com os seus pais, como riam e sorriam. como tudo parecia estar bem. na minha casa era cada um no seu canto. sem carinhos, sem afeto.

sai de casa tinha 15 anos, fui morar com a minha mãe, que na altura conhecia pouco. esta senhora a quem chamo mãe demonstrou realmente o que é ser mãe. nunca me abandonou, esteve sempre presente e deu-me afetos sempre que precisei. no entanto, sentia uma revolta enorme por ela ter saído de casa. tratei-a mal, e isso fez-me sentir um filho horrível e culpado. ao longo da minha adolescência criei amizades, algumas que duraram até hoje. amigos que, também, estiveram lá para mim, sempre. isso causou-me confusão, alegria e mágoa, pois pensava que tinha amigos apenas porque ninguém me conhecia de verdade. ninguém conhecia o monstro que era ou o monstro que sou. conheci também uma rapariga, cujo nome não vou dizer, ela ajudou-me a gostar de mim próprio e, tal como a minha mãe, aceitou-me pelo que eu era. senti, pela primeira vez na vida, amor. sentimento complexo que, sinceramente, não sabia como lidar com ele. no final tudo acabou mal, porque sempre que alguém se aproxima demais de mim, eu afasto-os demonstrando parcialmente o que sou de verdade. minto e condiciono. manipulo.

aos dezoito anos tentei-me matar, tomei uma caixa de olanzapina e cortei os pulsos. encontraram-me à entrada do meu prédio, desmaiado. lembro-me de ver a minha mãe a correr para mim e de pensar, vai tudo correr bem agora que ela está aqui. quando acordei, no hospital, o meu pai olhou para mim com um ar triste e desiludido. essa imagem marcou-me muito, especialmente porque quando sai de casa dele deixamos de falar durante dois anos. o meu pai nunca me fez sentir como se merecesse o louvar de quem se esforça, porque ele sabia que eu nunca me havia esforçado. sempre fui preguiçoso. nunca dei o meu melhor em nada. e ele sabia. embora isso, o meu pai ensinou-me muito e hoje sou o que sou devido à sua influencia. nem sempre as experiencias más fazem de nós más pessoas. podemos aprender com elas e mudar o ciclo do ódio. foi graças ao meu pai que me soube proteger. em quem escolher confiar. a quem me abrir. foi graças ao meu pai que aprendi a viver sozinho, porque na verdade, estávamos os dois sós e abandonados. eu e o meu pai não somos muito diferentes, na realidade até somos demasiado iguais, embora ele não admita. sempre quis ser como ele, pois ele sempre foi o meu herói. os meus pais sempre acreditaram em mim, sempre me deram o essencial e às vezes até a luxúria da vida. apostaram nos meus estudos, acreditaram que me ia formar, e ainda hoje trabalho para não os falhar. é por eles, e por mim, que tento lutar diariamente contra as vozes que me assombram, que me seguem e condicionam. as pessoas não sabem o que é o desespero até quererem ouvir a sua voz interior e não a conseguirem encontrar com tanto ruído que anda lá dentro.

não me vejo como um só, vejo-me como vários. chamem-me maluco, chamem-me Fernando Pessoa. não me importa, porque para mim sou apenas eu. ser "diferente" é algo de que me orgulho, porque ao longo da minha vida as minhas escolhas não eram as de uma pessoa "normal". uns seguiam as estradas, outros atravessavam o rio de barco, outros voavam por cima das planícies. eu? atirava-me para o meio do matagal, cortava-me nos picos, nas pedras, escorregava em poças, mas no final chegava onde queria chegar. o sofrimento é a porta pela qual todos aqueles que querem crescer têm de passar. não temam a dor. a dor é passageira.

aos vinte e três anos, decidi tomar mais uma dose incrível de comprimidos e mutilar-me de novo, desta vez para calar as vozes e para me focar no presente. não me orgulho do que fiz, pois os meus pais e amigos sofrem com as minhas ações. eu fico triste com isso, como é obvio, mas comportamentos desadaptativos são a unica coisa que aprendi na solidão. sinto-me sem esperança. pois embora faça de tudo para ficar melhor as vozes não param. é uma luta diária. sou eu a tentar restaurar o meu sentido de self. sou eu a tentar não assustar os que me rodeiam. eu posso ser um monstro, mas nem todos os monstros são maus. alguns são doceis, mimosos e só precisam de afeto. gostava que houvesse menos estigma em volta destas temáticas. porque as pessoas com condições semelhantes e não semelhantes à minha sofrem todos os dias, todas as horas, todos os anos. é um verdadeiro inferno.

depois de escrever isto tudo sinto-me melhor. sinto como se me tivessem tirado um peso de cima das costas. esta ideia foi-me proposta por uma profissional e supostamente o seu titulo é carta não lida. eu não gosto de cartas não lidas, por isso partilhei isto convosco. quem sabe tenha ajudado alguém, nem que seja a compreender melhor o outro.

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